os músculos de um mar que já foi gente
de carne morta, como se um fantasma vermelho lhe existisse,
a musicalidade obscena de uma mentira virou-me o corpo do avesso.
o sangue pinta-me a pele de tortura e um espectro de chumbo,
verde e nevoento, grotesco como a nudez da morte numa gaveta,
com a força esfíngica de uma tempestade intemporal,
precipita-se sobre a certeza dos meus ombros,
esmagando-me os ossos como se de água fossem.
olho para cima, vejo apenas os músculos de um mar que já foi gente.
gostava de poder falar-lhe ao ouvido,
de lhe contar as aventuras de um pássaro que aprendeu a voar sozinho,
gostava de o abraçar e sintetizar-lhe na pele a fisionomia de uma recordação,
mas o sangue negro que o envolve escapa-se-me entre os braços e o medo,
o assobio de um ramo vestido de sombras
impede que a chama dos ventos cá dentro lhe segredem: calor.
não gosto de começar um verso com a palavra não, mas
não há como fugir ao som desafinado de um não
se entoado pelo vazio no vazio da memória. serás capaz de o entender?
a fuga das marés para a noite arrasta com ela todos os bichos,
mas o regresso das andorinhas ao alvoroço madrugador,
acorda de novo o tridente que tenho cravado nas pernas,
amarra-me ao pesadelo do silêncio e dos contos por acabar.