– Pareces triste. Queres contar-me a tua história?
Em pouco mais de uma fração de segundo, a melodia contida naquela voz, encheu-me a alma e repetiu-se infinitamente na minha mente. Como flechas embebidas da sensibilidade apenas digna dos anjos, aquelas palavras rasgaram o sofrimento terreno que me atormentava e impregnaram de carinho e compreensão todo o meu ser.
Um a um, como as ondas, os pontos de referência que eu havia guardado foram explodindo nos meus olhos.
Uma velha igreja, que praticamente só a memória mantinha de pé, recordou-me a minha passagem pelos escuteiros e fez-me pensar na importância que isso teve na minha vida.
Eu queria fugir a isto, mas é inevitável. Cheguei a Paços durante a tarde e, de imediato, fui dormir porque “já era tarde” e num instante, ainda antes de me deitar, se fez noite. Devo ter sonhado, claro.
No dia seguinte jantei com toda a família e anunciei que precisava de estar no Porto na segunda-feira por volta das onze. De imediato, um primo disponibilizou-se para me levar e disse que me vinha buscar cerca das 8 h 30 min.
Vou voltar um pouco atrás. Contar o que tem sido a minha vida sem a Margarida. É possível resumi-la em uma só palavra: complicada. Para além dos, óbvios, tormentos sentimentais que foram provocados pela sua morte, também o lado prático da minha vida foi tremendamente afetado – e isto não é ser egoísta: é simples constatação. Por exemplo: era ela que tratava de agendar e coordenar as minhas terapias. A maioria das pessoas não se lembra de coisas que para elas são muito simples, mas que para mim são muito complicadas. Comer, por exemplo. Imaginem que só mexem uma mão – e mal – como fariam para comer? Claro que nisto posso sempre contar com a minha mãe, mas é só um exemplo.
A Dalila empurrou a cadeira até uma porta fechada. Parou, abriu a porta e acendeu as luzes. Deparei-me com um quarto como que arrumado e embelezado de propósito para ser fotografado para uma qualquer revista especializada. Modernidade a imperar, mas
há dias vi no facebook (através da sylvya agarus) uma imagem que, livremente traduzida, dizia que só precisamos de uma pessoa na nossa vida para a mudar por completo: nós. já não me lembro do autor. esta frase fez-me lembrar uma outra, acho que do atual Dalai Lama, que diz para sermos nós a mudança que queremos ver no mundo. independentemente dos autores, o sentido de ambas é bem verdadeiro: todas as grandes mudanças devem começar dentro de nós (as grandes – não é mudar de secretária no trabalho: essa pode começar pelo nosso chefe). quando há algo a mudar, seja no mundo seja em nós, não podemos esperar que sejam os outros a fazê-la. primeiro porque ninguém a faz por nós e em segundo porque ninguém a faz por nós. e enganam-se se acham que nada podem fazer, por exemplo, no conflito que opõe judeus a muçulmanos. se ensinarem uma criança judaica a amar uma criança muçulmana já terão mudado algo. parece-vos impossível? a indiferença é que, de certeza, não muda nada.
Apesar de já não ir ao Porto há muitos anos tudo me parecia familiar - em especial as cores e os cheiros, mas também os raros raios de Sol que escapavam ao topo dos prédios e aqueciam o alcatrão. Não estranhei. Lembro coisas bem mais improváveis. Por exemplo
Nunca nos poderemos sentir sós se dominarmos a arte de sermos felizes com a nossa companhia. Eu, desde que me conheço, que, no mínimo, me tenho a mim como companhia. Não tem corrido mal. Modéstia de parte: tenho sido uma excelente companhia para mim. Faço-me rir; converso; oiço-me; simpatizo comigo. Ninguém faria por mim o que eu faço.
Estar só connosco não é obrigatoriamente mau. Se pensarmos bem, a solidão é a forma que o universo tem de nos ensinar o caminho para dentro de nós.É possível estar só e conseguir quase tudo, parece-me que só a moral não se adquire em solidão. Claro que há os livros, mas de pouco valem se os ensinamentos que nos dão não puderem ser experimentados.
Claro que somos bichos sociais e que a companhia é indispensável, que as boas companhias até em silêncio o são, mas, normalmente, para ser boa companhia tem que se saber estar só. A solidão ensina-nos a ser boa companhia.
A solidão, no entanto, tem outra face. Uma mais sangrenta. Mais cruel. Uma que não se inibe de ferir todas e todos que se atravessam na sua frente. Que faz as casas pequenas e fogo o ar que só respiramos para não morrer. A solidão que mais se mostra. Confesso que me falta o ar só de pensar nela. De pensar na forma como arranca pedaços ao corpo de todas as coisas. Essa, que nos quebra os ossos e nos junta a cabeça aos pés, persegue-nos com facas afiadas e silencia todos os sons. Uma solidão mais tirana que o mar quando engole um navio.
Falo daquela a que nos remetem os desejos que não satisfazemos e que ninguém ajuda a concretizar. Essa a que nos remetem os hábitos que nos deixam – sempre que não são bem substituídos. Não a que sentimos por estar só, mas a que sentimos por não estarmos com quem queremos. Essa é, normalmente, muito destrutiva.
A Isabel acabara de pôr em evidência uma das suas características que mais admiro: a ponderação. Confesso que sou totalmente doente pela mulher ponderada. A ponderação obriga a pensar o que, normalmente, é sinal de inteligência: pela qual, admito, sou obstinado. Não gosto de mulheres burras, embora não saiba muito bem o que é isso de ser burra. Pressente-se. Sente-se.
“Pois, mas não tens direito a escolher caminhos onde atropelar os outros seja quase uma obrigação.” - Dir-me-ão. Talvez tenham razão. Tenho que pensar. Embora possa já afirmar que, na melhor hipótese, viajar é sofrer muito por um futuro que pode nem existir. Se não magoarmos ninguém, não há caminhos errados o que há são caminhos que ninguém quer fazer e eu não quero fazer viagens. Gosto dos destinos, mas não gosto dos caminhos. Isto pode bem ser um problema.