apesar do avc e da paralisia, sou um privilegiado. mantenho a que, para mim, é uma das capacidades mais importantes que temos: sermos nós próprios. a inteligência dá-nos a capacidade de nos adaptarmos, mas a capacidade de não o fazer, tentando não magoar quem quer que seja, é mais rara, complicada de obter e não se consegue com inteligência. essa capacidade é, demasiadas vezes, incompreendida. não alinhar com a maioria só porque sim, pensar e ter a nossa, bem fundamentada, opinião é muitas vezes confundido com arrogância. manter-se fiel, com qualidade de argumentos e não apenas por teimosia, é complicado: toda a gente gosta de aceitação e isso implica, muitas vezes, mudar de opinião. mantê-la e fundamentá-la com qualidade não é teimosia: é arte.
não estou com isto a dizer que nunca devemos mudar de opinião – lembrem-se que mudar é sinal de inteligência -, mas não a mudar só para, como dizem os americanos, go with the flow, é algo que devemos perseguir.
eu, felizmente, tenho o privilégio de pensar por mim e, mesmo que doa a alguém, ter a minha própria opinião. pena é que esse alguém seja, muitas vezes, eu.
não alinhem em carneiradas e pensem. um erro bem fundamentado é mais valioso que estar certo sem saber porquê.
O amor é um acidente. Eu estava sentada no regaço de uma mulher de cobre, uma escultura de Henry Moore, e Bill debruçou-se sobre mim e beijou-me nos lábios. E de repente eu amava-o. Amava-o e só isso importava. Reparei nas mãos dele, mãos de pianista. Mãos preparadas para o amor. Ainda hoje gosto de lhe ver as mãos enquanto folheia um livro, enquanto lê um jornal. As mãos dele envelheceram, envelheceram a apertar outras mãos, milhares de outras mãos, a jogar golfe, a assinar autógrafos e documentos importantes. Envelheceram, sim, mas continuam belas. Continuam a excitar-me.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir. Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter. Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
esta noite sonhei que caminhava despido numa estrada de palha. seguia ladeado por muros e pilhas de entulho - construções do acaso. ao longe, não muito, o rumoroso embater da água nas rochas transformava o silêncio do calor em promessa de frescura. entre o lixo e as paredes (e até ao descampado no final da rua), podiam-se ver gafanhotos de fogo a saltar em euforia - estranho como não incendiavam a estrada: enfim, era um sonho: até as falhas são credíveis.
caminhava lentamente. devagar. quase monotonamente.
apesar de, no sonho, estar a andar há horas, o fim da estrada e o descampado estavam ainda muito longe. por causa das fogueiras que me perseguiam não restava nenhum sal no meu corpo. não importava: a fraqueza que sentia era nos músculos e não no sangue. a estranha e férrea vontade de chegar ao descampado era muito mais forte. nenhuma fogueira era mais vigorosa.
na vida real, provavelmente, teria medo de caminhar assim para o desconhecido. apesar de achar que é o medo que impossibilita a maioria das coisas boas, também acho que as teorias não alimentam. a coragem não é não ter medo. pelo contrário. só tendo medo podemos ter coragem.
Sem entrar em grandes detalhes, a técnica baseia-se no uso de umas proteinas para regenerar as células que são atingidas pelo AVC.
Já lá vai muito tempo de imobilidade; muito tempo de inércia; muito tempo de simples espera. Os milagres existem, mas convém trabalhar para eles. Está na altura de tentar fazer alguma coisa. Fazer como quem diz.
Os amigos nunca são para as ocasiões. São para sempre. A ideia utilitária da amizade, como entreajuda, pronto-socorro mútuo, troca de favores, depósito de confiança, sociedade de desabafos, mete nojo. A amizade é puro prazer. Não se pode contaminar com favores e ajudas, leia-se dívidas. Pede-se, dá-se, recebe-se, esquece-se e não se fala mais nisso.