despe-me da chuva, façamos juntos a viagem ao centro da terra, esquece o sol e as estrelas-do-mar, vem:
segreda-me a babilónia toda ao ouvido, como se uma língua elegante te dançasse, segreda-me as asas frágeis de um anjo e ouve as minhas mãos crescerem-te nos seios.
cala todo este silêncio, cantemos juntos a ópera do vento nas oliveiras, desfralda as magnólias na tua boca, vem:
dá-me a crina de uma nuvem com os lábios, como se uma chama te elevasse ao céu, dá-me o som de um rio com os olhos e um gemido de açúcar com a tua pele.
A m o r t e d a p o e s i aUma explosão nuclear na cidade dos sonhosincendiou até as metáforas mais distantes.A devastação é enorme, cruel, vermelhae, de pé, restam apenas algumas sílabas.Há poemas novos completamente destruídos,ficções em ruínas a desabar em confidências,pensamentos submersos em lamas lilasese frases em sangue rasgadas pelas reticências.Embora longe deste negro cenário terminal,o mar chora a morte prematura da poesiae as suas lágrimas brilhantes são fotõesque tentam desesperados penetrar a treva.Mas onde houver um rio e um homem vivo,onde houver mulheres e corpos de cristal,onde houver desejo e beijos de jasmim,há também uma fonte de palavras prontas.Sempre que morre um poeta, nasce uma flore das suas pétalas nascem as cores e o orvalho,e à sua volta nascem as mãos e os sorrisos,e da alva simbiose, nascerá de novo a poesia.* 14/04/2004
um dia escrevi o meu nome num guardanapo de vidro e coloquei-o sobre a mesa. caminhei com as serras ao lado da noite até ao meu ventre. prometi às árvores e às pedras o meu nome escrito num guardanapo de vidro. um dia caminhei com as árvores e a noite pelas serras até ao meu nome. um dia prometi às árvores e às pedras o meu ventre. um dia, o meu nome sobre a mesa e um guardanapo de vidro no meu ventre. um dia o meu ventre e as serras caminharam sobre o meu nome. as noites sempre foram o meu nome, o meu ventre sempre foi a minha serra de vidro, as árvores e as pedras sempre foram a promessa de uma serra no meu caminho. o meu ventre e as serras e a noite e o meu nome. e o vidro. e o vidro. e as árvores e as pedras. e um guardanapo de pedras sobre a noite no meu ventre. e eu. e eu. e eu?
nunca os dias foram apenas amendoeiras em flor, mas também não se limitavam a relâmpagos silenciosos, foram sempre uma liga de metais nobres e úlceras camufladas.
depois há a fusão do tempo com o presente e as tempestades, há o que vai sendo esquecido e a erosão das lágrimas os vidros envelhecem e a nitidez perde-se por labirintos de facas.
penso-me.
talvez sejam as ínfimas sobras desses ventos de memórias mal semeadas, a indesejada tinta vermelha nas folhas dos cadernos onde aprendo a ler.
quando vi pela primeira vez, sob os teus pés despidos, o orvalho na relva transformar-se em lágrimas de luz, compreendi de imediato que sempre houve um sabor a mar nos teus passos. quase corrias, mas, aos meus olhos, os teus pés pisavam lentamente o verde e o esplendor era o orvalho que neles se fazia luz.
nesse dia, o ondular do teu corpo era como os segredos do vento sobre um campo de margaridas. brancas e amarelas, as margaridas ondulavam nas tuas ancas e todo o teu corpo ondulava como elas. quase corrias, mas o vento soprava lentamente sobre o teu corpo e todo ele era a lentidão do mar sob o sol de verão.
desde esse dia, os teus pés e o ondular do teu corpo são o meu orvalho nas manhãs de outono, são o meu vento, o meu mar e o meu sol de verão. desde esse dia, os teus pés e o ondular do teu corpo são o campo de margaridas onde adormeço para te sonhar. amo, desde esse dia até ao fim de todos os dias, os teus pés e o ondular do teu corpo.
falcões enfurecidos estalam relâmpagos nas pontas dos chicotes e obrigam larvas que jamais serão borboletas a palmilharem ruas de esperma pelo sonho de voar
não há como beber uma longa chávena de cacau lento sem recordar os teus lábios de sol quando me beijam
com cada gota de calor reaviva-se mais e mais a memória o lago em chamas onde navegas com a língua parece inundar as planícies no meu corpo e o amargo e doce de um arrepio percorre-me as costas como se os dedos da tua boca caminhassem no meu peito
talvez por isso seja esta a única vacina para a noite quando a lua morre antes que se canse a tinta de te amar
noitenão chove lá fora,mas todas as luzes se parecem com relâmpagos.eu tenho medo de relâmpagos.muito lentamente, sobre este medo, o vento. o vento lento. a espreitar da minha janela para o meu medo.depois a noite que é sempre noite. maldita noite,há momentos em que te preferia morta. a noitee as luzes, que se parecem com relâmpagos,a dirigirem o vento para a minha janela. e o medodos relâmpagos e do assobiar sombrio do vento.a noite a entrar pela minha janela. lentamente.ah malditas noites, iguais a todas as noites, iguais às trevas que eu sou também,eu que aprendi a destruir todas as sedas e a deixar-me devorar para comer,eu que descobri como transformar em água o sangue da poesia dos outros,se não aprender a amar-vos, quero-vos despidas, mortas e devoradas por cães selvagens! ensinem-me agora a amar-vos ou morram e deixem que brilhe o sol pela eternidade. o vento, devagar, a espreitar. a noite, lentamente, a entrar pela minha janela. o assobio sombrio do ventoe as luzes que se parecem com relâmpagos. o medoe o meu medo de relâmpagos. a minha janela e eu, sozinho, na minha cama com a noite. tanto tempo devagar.* 20/12/2003