entre o voo irregular dos ocasos de fogo e o motim angustiante dos raios solares mais jovens, a insónia perpétua, como lugar onde se agitam silêncios, é o calor que incendeia as paredes mais finas da pele. as palavras amam insultuosamente este inferno gelado, esta masmorra onde repousam as madrugadas, e nascem lentamente para uma rápida metamorfose. como larvas de borboletas, tecem casulos de corpos, defendendo-se das trevas com fantasias libidinosas, distorcem a simetria das várias faces dos círculos e prolongam a noite até à tangente ao voo dos pássaros.
sentado nesta cadeira de ferro, afogo-me de visões. pacientemente,percorro várias páginas digitais. algumas lentamente. a música, também tão paciente, rodopia à minha volta. em círculos de água, a música a rodopiar e os meus olhos a fingir concentração. alguém, deitada no meio de chamas, diz-me: o chá vai ficar frio;um aroma a limão adocicado segreda-me: está na hora de acordar, levanta-te. vozes, sempre demasiadas vozes, anunciam também o fim.* 08-01-2004
por trás de uma densa coluna de fumo brancohá uma tempestade de ossos vermelhosque me cresce por dentro do sanguenessa virgem floresta de artérias estranguladas pelo medo da loucuraexperimentei arrancar raízes e queimar as últimas folhasmas a memória permanece muito para além do corponão tenho medo de estar sótenho medo de não estar contigo24-02-2004
as algemas dos ciclos chegam a ser quase cruéis mas com os primeiros suspiros do amanhecer nasce também a certeza de uma orquídea exuberante a silenciar os lábios nocturnos da saturação
eram já quase um poema as flores, o amor e a saudade, quando um rugido incendiário, feito de trapos e balas perdidas, partiu da súbita compreensão e avançou, como um relâmpago, contra as palavras tão bem colocadas do poeta. o mar recolheu às cavernas dos poderosos, o sol brilhou para intensificar as sombras e um tridente, vermelho como para o poeta só as papoilas sabiam ser, trespassou-lhe o peito e o coração de vidro. ensanguentado, com frémitos ácidos a queimarem-lhe os dedos, adivinhou as trevas a lamberem as feridas e assustou-se com o gargantear da morte à sua volta. ter-se-á enfurecido, ou talvez compreendido por breves momentos, e, por isso, pegou numa acendalha de vergonha, juntou-lhe um curto rastilho de perdão e incendiou toda a sua obra.
dois dias depois, já as cinzas se espalhavam pelo ar como nuvens de insectos, descobriram o poeta pendurado numa corda de gritos. com o pescoço partido pela revolta e as pernas queimadas pelo desespero, com as mãos atadas pelo medo e a boca febril cheia de areia e fragmentos de poesia, estava já muito morto o pobre poeta. da sua obra, salvou-se apenas o último poema. escrito com uma pena alimentada pelo seu próprio sangue, era um poema sem métrica e sem amor, um poema sem regras e sem cores, um poema de últimas palavras que ainda hoje ardem no papel e queimam os lábios de quem as beija. um poema cheio de fome e valas comuns, feito de palavras que cegam quem as lê e ensurdecem quem as ouve. o poeta está morto, mas o poema continua vivo e não para de sangrar.
eis o mundo feérico das feridas incuráveis o inferno mesmo quando dormes gemes abandonado ao estertor da chuva na vidraça e ao vento que dança na persiana
não saberás nunca da tua metamorfose em pantera aérea - vou proibir que te passeies por cima dos sentimentos e dos móveis
a noite passada sonhei com escaravelhos negros. apenas em duas pernas, caminhavam sobre os meus braços e ensaiavam gritos de guerra numa harmonia de sons e movimentos de fazer inveja aos ventos nas copas das árvores. só conseguia vê-los depois de passarem os meus ombros e até chegarem às palmas das mãos. acho que jamais saberei de onde vinha e para onde iam.