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sem sono, e até ser como a vertigem das serras,
o nevoeiro expande-se pela intranquilidade do corpo.
é quando morre o dia
que mais me fere
a inexistência de uma mão
que me embale
o desejo.
lá fora, tela de Miró,
dentro da tempestade,
néons de dez mil cores
pontilham o manto
que me nego a receber.
espectral,
aproxima-se o desassossego
e vergam-se as árvores
à passagem medonha
do seu assobio.
choro-me
e funde-se-me o corpo
no mesmo vidro
onde chuvas
desenham memórias.
para que o receba
o calor que me resta,
abro as janelas,
inundo-
-me
depois de ter ouvido cães uivar durante a noite,
arde-me agora um silêncio por baixo dos músculos.
talvez se o tempo fosse apenas um mudo silêncio
eu não pudesse hoje festejar-nos com este poema
mas o nosso embrião foi uma sombra subterrânea
que se libertou pelo grito para ser o sonho teimoso
e a luz barulhenta que não deixa dormir o tempo
talvez se o fogo fosse apenas o de um fósforo curto
eu não estivesse hoje a festejar-nos com este poema
mas a semente deste navio foi um fulgor clandestino
que à hora do ocaso se revelou ser a floresta infinita
onde os incêndios do espírito se tornam incontroláveis
eu sei há ainda dez mil versos de amor por escrever
e temos ainda dez mil estrelas secretas por conquistar
mas hoje somos já como dois rios unidos pela serra
como duas pétalas da mesma margarida selvagem
que muitas vezes se perdem mas sempre se acham
somos já como dois cálices que se bebem mutuamente
como dois violinos da mesma orquestra de sentires
que muitas vezes se calam mas sempre regressam
eu sei há ainda ventos que sopram demasiado fortes
e temos ainda um exército de sombras por derrotar
mas neste primeiro ciclo que o sol sobre nós completa
aproveito o murmúrio veloz da celebração e segredo-te
sou tão totalmente teu como ao mar as ondas pertencem
sou um prolongamento em chamas da tua pele de fogo
relâmpago de pérolas que se desprende longamente da terra
para se espalhar na nudez de veludo onde te amo
os meus dedos penetravam a terra humedecida pelo desejo,
e eu sabia ser aquela a última vez que, inundado por palavras,
poderia desenhar uma lenta respiração na condensação do silêncio.
tentei, por isso, escrever um verso nos seios do adeus prematuro,
mas as letras, que escorriam desordenadas como o sangue de um pinheiro,
e os joelhos, que eram como um animal que me apertava entre os dentes,
impediram o poema e foi a língua que lhe tatuou na carne a última lágrima.