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in «AVC do Amor»
XL
Como devem ter percebido, quando tive a sulipampa, morava com a Margarida. Não éramos ricos, mas vivíamos bem (não éramos pobres) e éramos felizes – que considerávamos ser o mais importante. A classe média diz sempre isto, mas eu acho mesmo verdade. Éramos e somos. De outra forma, claro, mas somos. Foi toda uma aprendizagem, mas hoje podemos dizer que somos felizes – eu, pelo menos, posso (e ela acho que também).
Claro que a maldita impede algumas coisas que contribuem para a satisfação, mas, com o tempo, aprendemos a ser felizes com outras e com o que temos (outra banalidade da classe média que, pelo menos, numa coisa tem razão: a felicidade está fechada em casa: no amor à família). Ou, por outras palavras, como a grande maioria dos casais (pelo menos nisso somos iguais), acostumámo-nos. Nisso podemos ser iguais aos outros, mas há coisas em que somos muito diferentes: uma delas, uma das que mais gosto, é falarmos (ou comunicarmos, que eu, agora, pouco falo) imenso. Mesmo com as minhas limitações, provavelmente, falamos mais que alguns casais. Muito por culpa da Margarida – uma tagarela que, felizmente e para nosso bem, nunca se cala.
Tivemos (eu e a Margarida) que aprender a substituir algumas coisas. Uma das coisas que nos resta é “apenas” o sorriso – o da Margarida é muito bonito. O meu é raro (não porque eu queira, mas porque o AVC quis) e, por ser raro, é também valioso, mas o dela é muito sublime.
O nosso grande e, até hoje, bem guardado segredo (ainda segredo) é não procurar ter mais felicidade que a que temos. Quando se é feliz com o que já se tem, a própria da felicidade aumenta muito: garanto.
Apesar da minha, ainda, curta existência, já tenho a memória muito cheia de boas recordações. A Margarida encarregou-se de tratar disso. No entanto, no meio da inundação, ela tinha encontrado uma canoa, navegava entre as flores e tinha reservado (eu tinha, aliás) para ela o cantinho mais bonito. Isso chegava-nos. Isso e mais umas coisas que não são para aqui chamadas.
A felicidade suprema, para nós, estava na liberdade que tínhamos para escolher o que nos fazia bem. Liberdade era alegria e vice-versa.
O que nos fazia tão felizes era não termos a felicidade como objetivo, mas como modo de vida. Sem nunca magoar e desde que não atropelássemos ninguém entre a alegria e outro sentimento qualquer escolhíamos sempre a alegria. E fazíamos disso filosofia. Não caminhar para, caminhar com. Simples.
Uma das coisas que mais gostava na Margarida era ela não se vingar de ninguém. A vingança exige tempo e ela não o gastava com quem lhe fazia mal. Isso unia-nos e fazia-me feliz. E o que me faz feliz alegra-nos aos dois. Havia, como é óbvio, muitas outras como, por exemplo, não haver, para ela, barreiras que não pudessem ser ultrapassadas pelo amor. No entanto, era o ela achar a vingança uma perda de tempo que mais contribuía para a nossa felicidade.