Primeira Folha
O sol já não era de Verão. Nem o mar. As marés vivas rugiam violentamente contra as rochas, contra o verde muito escuro da falésia. O coração do mundo ardia na linha do horizonte e os seus gritos de adeus chicoteavam e rasgavam o céu pesado, incendiavam a superfície do mar até ao branco que explodia aos pés de uma varanda toscamente esculpida na pedra.
De pé, sobre o muro da varanda, Cristina, permaneceu imóvel até que o sol desaparecesse por completo. Até que a noite se estendesse por toda a paisagem. Sem estrelas, sem lua. Noite, sombra, trevas apenas. Escuridão e o ruído persistente dos dedos do mar a escavar a rocha alguns metros abaixo de Cristina.
A espaços, a luz de um farol passava por ali e iluminava a varanda. Nesse longo milésimo de segundo, o vestido branco que ondulava ao sabor da lentidão nocturna, surgia espectral, como se o espírito da falésia por ali estivesse em contemplação.
Segundos antes de um sino distante anunciar o fim do dia, soprou um vento mais forte. Soprou e abriu a cortina de nuvens que escondia a lua. Com a luz repentina, revelou-se também todo o esplendor de um corpo jovem. De um corpo perfeito. De um corpo que, mesmo imóvel, parecia cantar e encantar o tempo obrigando-o a parar. O cabelo, de um negro quase assustador, aproveitava o vento mais forte para voar como um falcão ao redor da próxima presa, mas mais lentamente. Muito mais lentamente.
Com a primeira badalada, Cristina abriu os braços, formando dois perfeitos ângulos de noventa graus e projectando, como sombra, uma imensa cruz sobre a parede da falésia. Provavelmente assustados com a treva que lhes invadia os ninhos, alguns pássaros abandonaram os buracos na pedra e desapareceram rapidamente, deixando para trás apenas os gritos e algumas crias, talvez famintas.
Com a última badalada, vindo sabe Deus de onde, o silêncio desceu e sufocou o mar, os pássaros e a noite. Sufocou a lua, sufocou toda a paisagem. Só não sufocou Cristina, que nesse preciso instante, abriu os olhos, olhou a lua totalmente muda, sorriu e disse-lhe baixinho:
- Serei eu a primeira folha deste Outono.
Sem hesitar, Cristina abandonou a sua árvore. Como para todas as folhas que morreram nesse Outono, e para que pudesse a queda ser da inominável beleza que se repete a cada Setembro, o tempo correu mais devagar. Devagar, para que nem um som se ouvisse com a entrada no mar da primeira e mais bela de todas as folhas.