três estranhos
Às 7:50 do dia 17 de Fevereiro de 2002, José Carlos Dias, fotógrafo, escreveu no seu quarto de hotel a seguinte página do seu diário:
«Lisboa, 17-02-2002, 7:50
A manhã nasceu fria e arrepiada pelo ladrar faminto e aflitivo dos cães. Nem pássaros, nem carros na avenida que por aqui passa. Apenas o uivo torturante dos cães. Talvez o quase silêncio exista por ser Domingo e estar muito frio, talvez porque já nada oiço senão sons de tortura.
Mantive o aquecimento ligado toda a noite na esperança que pelo menos o corpo permanecesse quente, o coração já nada o aquece. Passei a noite à espera de uma sensação, uma qualquer. Medo, amor, saudade, desejo, um qualquer sentir. Mas nada. O corpo e a mente estão demasiado cansados para que possa o espírito sentir.
Está quase na hora, daqui a pouco toca o despertador, levanto-me, tomo banho sento-me para o pequeno almoço e, depois do primeiro cigarro de hoje fumado fora da cama, saio de casa com a mesma máquina fotográfica de há anos. Depois faço-me ao caminho. Há um ano atrás seria a um qualquer caminho, hoje tem que ser ao caminho que mais rapidamente me leve à Avenida da Liberdade. Uma fotografia de sorte do Presidente Sampaio ou de outro qualquer VIP e talvez algum jornal me alimente até à próxima ocasião. Se existir uma próxima ocasião.
Há um ano atrás, um eléctrico, uma pedra iluminada da maneira certa, ou uma criança a comer um gelado, fariam o mesmo por mim até à desejada próxima ocasião. Não eram os meus dedos nem os meu olhos que fotografavam. Todo o trabalho era feito pela alma e pelo mesmo coração que hoje, cansado, me sufoca. Era o espírito do eléctrico, a alma de uma pedra, a essência de uma criança. Hoje limito-me a fotografar com o que me resta. Enquadrar segundo as regras, medição e focagem automáticas, disparar e esperar pela sorte.
Um ano. Um ano apenas. O desespero tem destas coisas. Quero pedir desculpa a todos quanto apostaram no meu trabalho. O sucesso sobe à cabeça, a carne é fraca e a mente, depois de experimentar alguns prazeres, torna-se ainda mais fraca. Hoje faço o meu último trabalho, depois abandono a fotografia. Talvez daqui a uns anos essas fotos que compraram sirvam para alimentar de novo alguém, guardem-nas.»